Elizabeth Gilbert, a autora do best-seller "Comer, Rezar, Amar", reflete sobre as coisas impossĂveis que esperamos dos artistas e ...
Elizabeth Gilbert, a autora do best-seller "Comer, Rezar, Amar", reflete sobre as coisas impossĂveis que esperamos dos artistas e gĂȘnios - e divide conosco a idĂ©ia radical de que, em vez dessas pessoas raras "serem" gĂȘnios, todos nĂłs deveriamos "ter" um gĂȘnio. Ă um relato muito pessoal, bem humorado e surprendentemente emocionante.
Eu sou uma escritora. Escrever livros é minha profissão, mas é mais do que isso, é claro. à também o grande amor e a fascinação de toda a minha vida. E eu espero que isso não mude nunca!
Dito isso, aconteceu uma coisa muito peculiar comigo recentemente, na minha vida e na minha carreira, que me fez rever a relação que tenho com esse trabalho. E o que houve de peculiar Ă© que eu acabo de escrever um livro de memĂłrias, chamado "Comer, Rezar, Amar" que, ao contrĂĄrio dos meus livros anteriores, se espalhou pelo mundo e por alguma razĂŁo virou esse best-seller internacional, uma mega-sensação. O resultado Ă© que, agora, onde quer que eu vĂĄ, as pessoas me tratam como se eu estivesse condenada. Ă sĂ©rio: condenada, condenada! Tipo, eles chegam para mim bem preocupados e dizem: "VocĂȘ nĂŁo sente medo, nĂŁo tem medo de nunca ser capaz de superar isso?" VocĂȘ nĂŁo tem medo de continuar escrevendo a sua vida toda e nunca mais escrever um livro que interesse alguma pessoa nesse mundo nunca mais?"
Ă um alĂvio ouvir isso, vocĂȘs imaginam. Podia ser pior, mas eu na verdade me lembro, que mais de 20 anos atrĂĄs, quando eu era adolescente e comecei a dizer Ă s pessoas que eu queria ser escritora, Eu encontrei esse mesmo tipo de reação baseada no medo, E as pessoas diziam " VocĂȘ nĂŁo tem medo de nunca fazer sucesso?" VocĂȘ nĂŁo teme que a humilhação e a rejeição possam te matar? VocĂȘ nĂŁo estĂĄ preocupada de trabalhar a vida inteira num ofĂcio que nunca vai te dar nada e vocĂȘ vai acabar num monte de sucata de sonhos nĂŁo realizados e com um gosto amargo de fracasso em sua boca?" (risadas) E coisas assim. VocĂȘs sabem.
E a resposta, uma resposta curta para todas essas perguntas Ă© " Sim". Ă claro que tenho medo de tudo isso. Sempre tive. E tenho medo de muitas outras coisas alĂ©m dessas que as pessoas nem imaginam. Como algas marinhas, e outras coisas assustadoras. Mas quando se trata de escrever a coisa que eu tenho pensando e ponderado ultimamente Ă©, por que? Ou seja: isso Ă© racional? Ă lĂłgico que uma pessoa deva ter medo de fazer um trabalho que ela sente que Ă© sua missĂŁo na terra? Sabem? E qual Ă© o problema com as atividades criativas que parecem sempre nos deixar muito preocupados com nossa saĂșde mental coisa que nĂŁo acontece em outras carreiras, sabe como? Meu pai, por exemplo, foi um engenheiro quĂmico e eu nĂŁo me lembro de ninguĂ©m perguntar a ele, em seus 40 anos de atividade, se ele tinha medo de ser em engenheiro quĂmico, certo? NinguĂ©m dizia...vocĂȘ estĂĄ sem inspiração para ser engenheiro quĂmico, John, estĂĄ tudo bem com vocĂȘ? Isso simplesmente nĂŁo acontecia, sabem? mas, verdade seja dita, os engenheiros quĂmicos, como um grupo, nĂŁo tem uma fama que atravessa sĂ©culos de serem alcĂłlatras e manĂaco-depressivos. (risadas)
JĂĄ nĂłs, os escritores, meio que temos essa reputação nĂŁo apenas os escritores, mas pessoas criativas de todos os tipos, parecem ter essa fama de serem emocionalmente muito instĂĄveis. E se olharmos para a triste marca do nĂșmero de mortos apenas no sĂ©culo 20, de mentes criativas realmente magnĂficas, que morreram cedo e muitas vezes por suas proprias mĂŁos, sabem? E mesmo aqueles que nĂŁo cometeram sucĂdio, literalmente, parecem ter sido derrotados pelos seus dons. Norman Mailer, pouco antes de morrer, em sua ultima entrevista, disse: "Cada um de meus livros me matou um pouquinho". Uma declaração impressionante para se fazer sobre uma vida de trabalho, nĂŁo? Mas nĂłs nem ligamos quando ouvimos isso, porque jĂĄ escutamos esse tipo de coisa por tanto tempo, e jĂĄ internalizamos e aceitamos coletivamente essa idĂ©ia, que criatividade e sofrimento parecem estar indissoluvelmente ligados e que, a arte, ao fim e ao cabo, sempre nos levarĂĄ Ă angĂșstia.
E a pergunta que quero fazer a todos, hoje e aqui, Ă©: vocĂȘs estĂŁo tranquilos com isso? VocĂȘs aceitam isso -- porque se a gente olhar com um mĂnimo de distanciamento, sabem -- Eu nĂŁo estou NADA confortĂĄvel com essa suposição. Eu acho que ela Ă© odiosa. E tambĂ©m acredito que seja perigosa, e eu nĂŁo quero vĂȘ-la perpetuada no prĂłximo sĂ©culo. Eu acho que Ă© muito melhor a gente encorajar as mentes criativas a viver.
E, com toda a certeza, eu sei que na minha situação, seria muito perigoso eu me deixar levar para aquele caminho escuro se considerarmos particularmente as circunstĂąncias em que me encontro agora, em minha carreira. Que Ă© o seguinte, vejam: Eu sou bem jovem, tenho apenas 40 anos de idade Com pelo menos outras quatro dĂ©cadas de trabalho pela frente, E Ă© muito provĂĄvel que, qualquer coisa que eu escreva a partir de agora serĂĄ julgada pelo mundo como o trabalho que veio depois do sucesso assustador do meu Ășltimo livro, certo? E eu vou ser bem clara com vocĂȘs, porque aqui somos todos amigos, Ă© muito provĂĄvel que meu maior sucesso tenha ficado para trĂĄs. Oh, Jesus, que ideia terrĂvel! Esse Ă© o tipo de ideia que poderia levar uma pessoa a começar a beber gim Ă s 9 da manhĂŁ, e eu nĂŁo quero fazer isso! (risadas) Eu prefiro continuar a fazer esse trabalho que eu amo.
Assim, a pergunta agora é: como? Depois de muita reflexão, me parece que a maneira como eu devo trabalhar agora, para continuar escrevendo, é criar uma espécie de "construção psicológica protetora", certo? Eu preciso encontrar uma forma de colocar uma distùncia segura entre eu mesma, quando escrevo, e minha ansiedade natural sobre qual serå a reação à minha escrita, a partir de agora. E, depois de analisar alumas maneiras de fazer isso, durante este ano, eu andei pesquisando através dos tempos, tentando encontrar outras sociedades e ver se elas por acaso tinham ideias melhores e mais saudåveis do que as nossas, sobre como ajudar pessoas criativas a cuidar dos riscos emocionais inerentes à criatividade.
Essa busca me levou atĂ© Ă GrĂ©cia e a Roma antigas. Sigam meu raciocĂnio, logo estaremos de volta onde começamos. Na Antiga GrĂ©cia e em Roma, as pessoas nĂŁo acreditavam que a criatividade viesse dos seres humanos, OK? Elas achavam que criatividade era um espirito divino de plantĂŁo que vinha ter com os seres humanos de uma fonte distante e desconhecida por razĂ”es distantes e desconhecidas. Os gregos chamavam esses espĂritos criativos divinos de "daemons" SĂłcrates, diz a lenda, acreditava ter um daemon que lhe dizia de longe palavras de sabedoria. Os romanos tinham a mesma ideia, mas eles chamavam esses espĂritos incorpĂłreos de gĂȘnios. O que Ă© Ăłtimo, porque os romanos nĂŁo acreditavam que um gĂȘnio era uma pessoa particularmente inteligente. Eles achavam que gĂȘnio era esse tipo de entidade mĂĄgica e divina, que se acreditava que viviam literalmente nas paredes do estĂșdio de um artista, como Dobby, o gnomo da casa, que saĂa e ajudava o artista em seu trabalho,de forma invisĂvel, e cuidava de tudo atĂ© o final.
Brilhante! Ă exatamente desse tipo de distĂąncia que estou falando, Ă© a tal "construção psicolĂłgica" que vai te proteger do resultado do seu trabalho. E todo mundo sabia que era assim que as coisas funcionavam, certo? Assim, o artista na antiguidade,ficava protegido de certas coisas, como, por exemplo, de um excesso de narcisismo, se seu trabalho fosse brilhante, vocĂȘ nĂŁo podia levar todos os crĂ©ditos por isso, todo mundo sabia que vocĂȘ tinha um gĂȘnio invisĂvel que te ajudava. E se seu trabalho fosse um fracasso, tambĂ©m nĂŁo era sĂł culpa sua, certo? Todo mundo sabia que seu gĂȘnio era meio folgado... Era assim que as pessoas pensavam sobre a criatividade no mundo ocidental, por bastante tempo.
AĂ veio o Renascimento e mudou tudo, e nĂłs tivemos uma grande ideia, que foi: vamos colocar o homem no centro do universo acima de todos os deuses e mistĂ©rios e nĂŁo haverĂĄ mais lugar para criaturas misticas que ditam coisas de uma fonte divina. Este foi o inĂcio do racionalismo humanista, e as pessoas passaram a acreditar que a critividade vinha inteiramente do "self" dos individuos. E pela primeira vez na histĂłria, a gente começa a ouvir as pessoas se referirem a este ou aquele artista como sendo um gĂȘnio ao contrĂĄrio de "ter" um gĂȘnio.
Eu preciso dizer que acho que isso foi um grande erro. Eu acredito que permitir que alguĂ©m, uma mera pessoa, acredite que ele ou ela Ă© o vaso, o molde,a essĂȘncia e a fonte de todo o mistĂ©rio criativo, divino, eterno e desconhecido, Ă© um pouco de responsabilidade demais para a nossa psique humana e frĂĄgil. Ă como pedir a alguĂ©m que engula o Sol. Isto sĂł distorce e deforma egos e cria expectativas incontrolĂĄveis sobre a nossa atuação. E eu acredito que Ă© esta pressĂŁo que vem matando nossos artistas durante os Ășltimos 500 anos.
E, se isso Ă© verdade, e eu acredito que seja, a pergunta se torna: e agora? Podemos fazer isso de outra maneira? Quem sabe voltar Ă quela compreensĂŁo mais antiga sobre a relação dos humanos com o mistĂ©rio da criatividade ou talvez nĂŁo. Talvez a gente nĂŁo possa simplesmente apagar 500 anos de pensamento racional humanista num pequeno discurso de 18 minutos. E provavelmente hĂĄ pessoas na platĂ©ia, que vĂŁo levantar suspeitas cientificas legitimas sobre a noção de que existem fadinhas que seguem a gente e esfregam um suco mĂĄgico nos nossos projetos, e tal. Provavelmente eu nĂŁo consiga convencer todos vocĂȘs.
Mas a questĂŁo que eu quero colocar Ă©: por que nĂŁo? Por que nĂŁo pensar sobre isso dessa maneira? Para mim faz tanto sentido quanto todas as outras coisas que jĂĄ ouvi a respeito em termos de explicar os caprichos enlouquecedores do processo criativo. Um processo que, todo mundo que jĂĄ tentou fazer algo, todo mundo que estĂĄ aqui, basicamente -- sabe que nĂŁo se comporta apenas de forma racional. E que, de fato, muitas vezes parece ser inteiramente paranormal.
Eu me encontrei recentemente com a extraordinĂĄria poeta americana Ruth Stone, que estĂĄ com 90 anos, e foi poeta a vida inteira e ela me contou que quando crescia no interior da Virginia, trabalhando na lavoura, ela podia sentir e ouvir um poema chegar atĂ© ela por sobre a paisagem. Ela contou que era como uma lufada estrondosa de ar que que descia atrĂĄs dela atĂ© o campo. E ela sabia que estava chegando, porque a terra tremia debaixo de seus pĂ©s. E ela sabia que sĂł podia fazer uma coisa: que era, em suas prĂłprias palavras, "correr como o diabo" e ela "corria como o diabo" atĂ© a casa como se estivesse sendo perseguida pelo poema, e ela tinha que pegar uma folha de papel e um lĂĄpis, bem depressa, de tal maneira que quando o poema passasse atravĂ©s dela, ela pudesse agarrĂĄ-lo e prendĂȘ-lo naquela pĂĄgina. Algumas vezes ela nĂŁo era rĂĄpida o suficiente e apesar de correr e correr, ela nĂŁo chegava ao papel a tempo e o poema atravessava o corpo dela e ela o perdia e continuava a seguir atravĂ©s da planĂcie procurando, como ela dizia , "por um outro poeta". Algumas outras vezes, e essa Ă© a parte que eu nunca esqueço, ela falou que havia momentos em que o poema passava raspando e ela ia correndo atĂ© a casa atrĂĄs do papel e o poema a atravessava, e ela pegava o lĂĄpis no momento em que ele estava passando por ela e ela dizia que era como se ela o pegasse com a outra mĂŁo e o agarrasse. Ela pegava o poema pelo rabo, e o puxava de volta para dentro do seu corpo enquanto transcrevia a pĂĄgina e nessas instĂąncias, o poema aparecia sobre o papel perfeito e intacto, mas de cabeça para baixo, começando pela Ășltima palavra (risos)
Quando eu ouvi isso, eu fiquei tipo -- isso Ă© bizarro, Ă© exatamente assim que funciona o meu processo criativo. (mais risos)
Meu processo criativo vai bem alĂ©m disso, eu nĂŁo sou apenas uma antena! Eu sou uma mula, de tanto que eu trabalho, eu tenho que acordar todos os dias na mesma hora, e suar e escrever e me atirar ao trabalho de uma forma bem atribulada e atĂ© eu, na minha mulice, jĂĄ me encontrei de raspĂŁo com essa coisa, algumas vezes, e imagino que muitos de vocĂȘs tambĂ©m jĂĄ tenham passado por isso AtĂ© comigo jĂĄ aconteceu de trabalhos ou idĂ©ias chegarem atĂ© mim atravĂ©s de uma fonte que eu honestamente nĂŁo consigo identificar. O que Ă© essa coisa? E como devemos nos relacionar com ela de tal forma que ela nĂŁo nos faça perder a cabeça, mas, que, na verdade, nos ajude a sermos saudĂĄveis?
E para mim, o melhor exemplo contemporĂąneo que temos de como fazer isso, Ă© o musico Tom Waits que eu entrevistei para uma revista anos atrĂĄs NĂłs estĂĄvamos falando sobre isso e Tom, vocĂȘs sabem, durante a maior parte de sua vida, foi o protĂłtipo do artista atormentado moderno e contemporĂąneo, tentando dominar e administrar esses impulsos criativos incontrolĂĄveis que estavam totalmente internalizados nele.
Mas aĂ ele ficou mais velho, mais calmo, e ele me contou que um dia estava dirigindo o carro numa marginal de Los Angeles, e foi quando tudo mudou. Ele estava correndo e de repente ele ouviu um pequeno fragmento de melodia, que surgiu na sua cabeça, uma inspiração que surge Ă s vezes, fugidia e tentadora, e vocĂȘ quer registrĂĄ-la pois Ă© linda, ele a deseja, mas nĂŁo tem como agarrĂĄ-la. NĂŁo tem papel, nem lĂĄpis nem gravador,
E ele começa a sentir aquela ansiedade brotar nele tipo "eu vou perder essa coisa", e esta canção vai me assombrar para o resto da vida. Eu nĂŁo sou bom o suficiente para fazer isso." Mas em vez de entrar em pĂąnico, ele parou. Ele simplesmente parou aquele processo mental e fez algo completamente inusitado. Ele olhou para o cĂ©u e disse, "Desculpe, mas vocĂȘ nĂŁo vĂȘ que eu estou dirigindo?" (risos) "Eu estou com cara de quem vai escrever uma canção agora? Se vocĂȘ quer realmente existir, volte num momento mais oportuno em que eu possa cuidar de vocĂȘ. Ou entĂŁo, vai enlouquecer outra pessoa... Vai atrĂĄs do Leonard Cohen".
E todo o seu processo de trabalho mudou depois disso. Não o trabalho, que na maioria das vezes continua tão escuro quanto antes. Mas o processo e a ansiedade que pesava em torno dele se liberaram quando ele tirou o génio de dentro dele onde ele só criava problema, e devolveu-o ao lugar de onde tinha vindo. E percebeu que não tinha que viver essa coisa internalizada e tormentosa e que ela podia ser apenas uma colaboração maravilhosa e bizarra uma espécie de bate papo entre Tom e aquela coisa estranha fora dele, que não era exatamente Tom.
Quando eu ouvi essa histĂłria eu comecei a mudar um pouco minha forma de trabalhar, e isso jĂĄ me salvou uma vez. Essa idĂ©ia me salvou quando eu estava no meio do livro "Comer, Rezar, Amar" e cai num desses poços de desespero em que todos nĂłs caĂmos quando estamos trabalhando em algo que nĂŁo acontece e vocĂȘ começa a pensar que vai acabar em desastre, e que o seu livro serĂĄ a pior obra jĂĄ escrita. NĂŁo apenas ruim, mas o pior livro de toda a histĂłria. E comecei a pensar em engavetar o projeto. E entĂŁo eu me lembrei de Tom, falando para o ar, e experimentei fazer o mesmo. Eu levantei o rosto do manuscrito e dirigi meus comentĂĄrios a um canto vazio da sala. E disse em voz alta, " Escuta aqui, sua coisa, vocĂȘ e eu sabemos que se este livro nĂŁo for brilhante, a culpa nĂŁo serĂĄ toda minha, certo? Porque vocĂȘ estĂĄ vendo que estou colocando tudo que eu tenho nele E eu nĂŁo tenho nada alĂ©m disso. EntĂŁo, se vocĂȘ quer que ele fique melhor, dĂȘ as caras e faça a sua parte. OK. E se vocĂȘ nĂŁo fizer isso, quer saber? Dane-se! Eu vou continuar escrevendo do mesmo jeito por que este Ă© meu ofĂcio. E eu gostaria que hoje ficasse registrado em nossa agenda que eu compareci para fazer minha parte do trabalho. (risos)
Porque -- (aplauso) no fim das contas Ă© assim, OK -- sĂ©culos atrĂĄs nos desertos do norte da Ăfrica, as pessoas se encontravam para fazer mĂșsica e dançar ao luar que duravam horas, atĂ© o amanhecer. E elas eram magnĂficas porque os dançarinos eram profissionais eles eram incrĂveis, sabe? Mas uma vez ou outra, raramente, acontecia alguma coisa, e um desses bailarinos realmente transcendia. E eu sei que vocĂȘs sabem do que estou falando, porque eu sei que todos vocĂȘs jĂĄ viram, em algum momento de sua vida, uma atuação como esta. E foi como se o tempo parasse, e o dançarino entrasse numa espĂ©cie de portal e ele nĂŁo fazia nada diferente do que vinha fazendo desde hĂĄ mil noites atrĂĄs mas Ă© como se tudo se alinhasse. E nĂŁo mais que de repente ele deixasse de ser apenas humano. E ele era iluminado de dentro para fora, e debaixo para cima, todo iluminado pelo fogo divino.
E quando isso acontecia, naquele tempo, as pessoas sabiam do que se tratava e a chamavam pelo nome. Elas juntavam as mĂŁos e cantavam, "AlĂĄ, AlĂĄ, AlĂĄ, Deus, Deus, Deus". Era Deus, entendem? Uma nota de rodapĂ© curiosa -- historicamente, quando ou mouros invadiram a Espanha, eles levaram consigo esse costume e sua pronĂșncia mudou com o passar do tempo, de "AlĂĄ, AlĂĄ, AlĂĄ, para OlĂ©, olĂ©, olĂ©" que ainda se ouve em touradas e danças flamencas. Na Espanha, quando um artista faz alguma coisa impossĂvel e mĂĄgica, "AlĂĄ, olĂ©, olĂ©, magnĂfico, bravo" Ă© algo incompreensĂvel Ă© um lampejo de Deus. O que Ă© Ăłtimo, porque nĂłs precisamos dele.
Mas a parte complicada acontece na manhĂŁ seguinte, para o dançarino, quando ele acorda e descobre que Ă© terça feira sĂŁo 11 da manhĂŁ e ele nĂŁo Ă© mais um lampejo divino. Ele Ă© apenas um mortal que estĂĄ envelhecendo com joelhos estourados, e quem sabe ele nunca mais suba tĂŁo alto E que talvez ninguĂ©m mais cante seu nome outra vez enquanto ele gira, e entĂŁo, o que ele deve fazer com o resto de sua vida? Ă difĂcil. Esta Ă© um dos mais dolorosos acertos a se fazer numa vida criativa. Mas digamos que isso nĂŁo tenha que ser tĂŁo angustiante se vocĂȘ nunca acreditar, em primeiro lugar, que os aspectos mais extraordinĂĄrios do seu ser vem de vocĂȘ. Quem sabe seja melhor acreditar que eles sĂŁo emprestados a vocĂȘ por uma fonte inimaginĂĄvel de uma parte rara de sua vida que serĂĄ passada para alguĂ©m quando vocĂȘ partir. E acreditem, se a gente pensa nisso desta forma, tudo começa a mudar.
Foi assim que eu comecei a pensar, e Ă© assim que tenho pensado nesses Ășltimos meses enquanto trabalho no livro que devo publicar em breve a tal perigosa, apavorante e muito aguardada continuação do meu louco sucesso.
E o que eu digo a mim mesma quando eu fico realmente enlouquecida com isso, Ă©: nĂŁo tenha medo. NĂŁo desanime. Apenas faça o seu trabalho. Continue a comparecer para fazer sua parte, seja ela qual for. Se seu trabalho Ă© dançar, dance. E se o gĂ©nio divino e maroto que foi designado para acompanhar o seu caso permitir que atravĂ©s do seu esforço aconteça um lampejo maravilhoso, entĂŁo, "OlĂ©"! E se nĂŁo, faça a sua dança,do mesmo jeito, E "OlĂ©" para vocĂȘ da mesma forma. Eu acredito nisso e acho que devemos ensinar isso uns aos outros. "OlĂ©!" para vocĂȘ, apesar de tudo, simplesmente por possuir esse puro amor humano e a teimosia de continuar aparecendo para fazer a sua parte.
Obrigada. (aplauso) Obrigada. (aplauso)
June Cohen: Olé! (aplauso)
[Via BBA]
Eu sou uma escritora. Escrever livros é minha profissão, mas é mais do que isso, é claro. à também o grande amor e a fascinação de toda a minha vida. E eu espero que isso não mude nunca!
Dito isso, aconteceu uma coisa muito peculiar comigo recentemente, na minha vida e na minha carreira, que me fez rever a relação que tenho com esse trabalho. E o que houve de peculiar Ă© que eu acabo de escrever um livro de memĂłrias, chamado "Comer, Rezar, Amar" que, ao contrĂĄrio dos meus livros anteriores, se espalhou pelo mundo e por alguma razĂŁo virou esse best-seller internacional, uma mega-sensação. O resultado Ă© que, agora, onde quer que eu vĂĄ, as pessoas me tratam como se eu estivesse condenada. Ă sĂ©rio: condenada, condenada! Tipo, eles chegam para mim bem preocupados e dizem: "VocĂȘ nĂŁo sente medo, nĂŁo tem medo de nunca ser capaz de superar isso?" VocĂȘ nĂŁo tem medo de continuar escrevendo a sua vida toda e nunca mais escrever um livro que interesse alguma pessoa nesse mundo nunca mais?"
Ă um alĂvio ouvir isso, vocĂȘs imaginam. Podia ser pior, mas eu na verdade me lembro, que mais de 20 anos atrĂĄs, quando eu era adolescente e comecei a dizer Ă s pessoas que eu queria ser escritora, Eu encontrei esse mesmo tipo de reação baseada no medo, E as pessoas diziam " VocĂȘ nĂŁo tem medo de nunca fazer sucesso?" VocĂȘ nĂŁo teme que a humilhação e a rejeição possam te matar? VocĂȘ nĂŁo estĂĄ preocupada de trabalhar a vida inteira num ofĂcio que nunca vai te dar nada e vocĂȘ vai acabar num monte de sucata de sonhos nĂŁo realizados e com um gosto amargo de fracasso em sua boca?" (risadas) E coisas assim. VocĂȘs sabem.
E a resposta, uma resposta curta para todas essas perguntas Ă© " Sim". Ă claro que tenho medo de tudo isso. Sempre tive. E tenho medo de muitas outras coisas alĂ©m dessas que as pessoas nem imaginam. Como algas marinhas, e outras coisas assustadoras. Mas quando se trata de escrever a coisa que eu tenho pensando e ponderado ultimamente Ă©, por que? Ou seja: isso Ă© racional? Ă lĂłgico que uma pessoa deva ter medo de fazer um trabalho que ela sente que Ă© sua missĂŁo na terra? Sabem? E qual Ă© o problema com as atividades criativas que parecem sempre nos deixar muito preocupados com nossa saĂșde mental coisa que nĂŁo acontece em outras carreiras, sabe como? Meu pai, por exemplo, foi um engenheiro quĂmico e eu nĂŁo me lembro de ninguĂ©m perguntar a ele, em seus 40 anos de atividade, se ele tinha medo de ser em engenheiro quĂmico, certo? NinguĂ©m dizia...vocĂȘ estĂĄ sem inspiração para ser engenheiro quĂmico, John, estĂĄ tudo bem com vocĂȘ? Isso simplesmente nĂŁo acontecia, sabem? mas, verdade seja dita, os engenheiros quĂmicos, como um grupo, nĂŁo tem uma fama que atravessa sĂ©culos de serem alcĂłlatras e manĂaco-depressivos. (risadas)
JĂĄ nĂłs, os escritores, meio que temos essa reputação nĂŁo apenas os escritores, mas pessoas criativas de todos os tipos, parecem ter essa fama de serem emocionalmente muito instĂĄveis. E se olharmos para a triste marca do nĂșmero de mortos apenas no sĂ©culo 20, de mentes criativas realmente magnĂficas, que morreram cedo e muitas vezes por suas proprias mĂŁos, sabem? E mesmo aqueles que nĂŁo cometeram sucĂdio, literalmente, parecem ter sido derrotados pelos seus dons. Norman Mailer, pouco antes de morrer, em sua ultima entrevista, disse: "Cada um de meus livros me matou um pouquinho". Uma declaração impressionante para se fazer sobre uma vida de trabalho, nĂŁo? Mas nĂłs nem ligamos quando ouvimos isso, porque jĂĄ escutamos esse tipo de coisa por tanto tempo, e jĂĄ internalizamos e aceitamos coletivamente essa idĂ©ia, que criatividade e sofrimento parecem estar indissoluvelmente ligados e que, a arte, ao fim e ao cabo, sempre nos levarĂĄ Ă angĂșstia.
E a pergunta que quero fazer a todos, hoje e aqui, Ă©: vocĂȘs estĂŁo tranquilos com isso? VocĂȘs aceitam isso -- porque se a gente olhar com um mĂnimo de distanciamento, sabem -- Eu nĂŁo estou NADA confortĂĄvel com essa suposição. Eu acho que ela Ă© odiosa. E tambĂ©m acredito que seja perigosa, e eu nĂŁo quero vĂȘ-la perpetuada no prĂłximo sĂ©culo. Eu acho que Ă© muito melhor a gente encorajar as mentes criativas a viver.
E, com toda a certeza, eu sei que na minha situação, seria muito perigoso eu me deixar levar para aquele caminho escuro se considerarmos particularmente as circunstĂąncias em que me encontro agora, em minha carreira. Que Ă© o seguinte, vejam: Eu sou bem jovem, tenho apenas 40 anos de idade Com pelo menos outras quatro dĂ©cadas de trabalho pela frente, E Ă© muito provĂĄvel que, qualquer coisa que eu escreva a partir de agora serĂĄ julgada pelo mundo como o trabalho que veio depois do sucesso assustador do meu Ășltimo livro, certo? E eu vou ser bem clara com vocĂȘs, porque aqui somos todos amigos, Ă© muito provĂĄvel que meu maior sucesso tenha ficado para trĂĄs. Oh, Jesus, que ideia terrĂvel! Esse Ă© o tipo de ideia que poderia levar uma pessoa a começar a beber gim Ă s 9 da manhĂŁ, e eu nĂŁo quero fazer isso! (risadas) Eu prefiro continuar a fazer esse trabalho que eu amo.
Assim, a pergunta agora é: como? Depois de muita reflexão, me parece que a maneira como eu devo trabalhar agora, para continuar escrevendo, é criar uma espécie de "construção psicológica protetora", certo? Eu preciso encontrar uma forma de colocar uma distùncia segura entre eu mesma, quando escrevo, e minha ansiedade natural sobre qual serå a reação à minha escrita, a partir de agora. E, depois de analisar alumas maneiras de fazer isso, durante este ano, eu andei pesquisando através dos tempos, tentando encontrar outras sociedades e ver se elas por acaso tinham ideias melhores e mais saudåveis do que as nossas, sobre como ajudar pessoas criativas a cuidar dos riscos emocionais inerentes à criatividade.
Essa busca me levou atĂ© Ă GrĂ©cia e a Roma antigas. Sigam meu raciocĂnio, logo estaremos de volta onde começamos. Na Antiga GrĂ©cia e em Roma, as pessoas nĂŁo acreditavam que a criatividade viesse dos seres humanos, OK? Elas achavam que criatividade era um espirito divino de plantĂŁo que vinha ter com os seres humanos de uma fonte distante e desconhecida por razĂ”es distantes e desconhecidas. Os gregos chamavam esses espĂritos criativos divinos de "daemons" SĂłcrates, diz a lenda, acreditava ter um daemon que lhe dizia de longe palavras de sabedoria. Os romanos tinham a mesma ideia, mas eles chamavam esses espĂritos incorpĂłreos de gĂȘnios. O que Ă© Ăłtimo, porque os romanos nĂŁo acreditavam que um gĂȘnio era uma pessoa particularmente inteligente. Eles achavam que gĂȘnio era esse tipo de entidade mĂĄgica e divina, que se acreditava que viviam literalmente nas paredes do estĂșdio de um artista, como Dobby, o gnomo da casa, que saĂa e ajudava o artista em seu trabalho,de forma invisĂvel, e cuidava de tudo atĂ© o final.
Brilhante! Ă exatamente desse tipo de distĂąncia que estou falando, Ă© a tal "construção psicolĂłgica" que vai te proteger do resultado do seu trabalho. E todo mundo sabia que era assim que as coisas funcionavam, certo? Assim, o artista na antiguidade,ficava protegido de certas coisas, como, por exemplo, de um excesso de narcisismo, se seu trabalho fosse brilhante, vocĂȘ nĂŁo podia levar todos os crĂ©ditos por isso, todo mundo sabia que vocĂȘ tinha um gĂȘnio invisĂvel que te ajudava. E se seu trabalho fosse um fracasso, tambĂ©m nĂŁo era sĂł culpa sua, certo? Todo mundo sabia que seu gĂȘnio era meio folgado... Era assim que as pessoas pensavam sobre a criatividade no mundo ocidental, por bastante tempo.
AĂ veio o Renascimento e mudou tudo, e nĂłs tivemos uma grande ideia, que foi: vamos colocar o homem no centro do universo acima de todos os deuses e mistĂ©rios e nĂŁo haverĂĄ mais lugar para criaturas misticas que ditam coisas de uma fonte divina. Este foi o inĂcio do racionalismo humanista, e as pessoas passaram a acreditar que a critividade vinha inteiramente do "self" dos individuos. E pela primeira vez na histĂłria, a gente começa a ouvir as pessoas se referirem a este ou aquele artista como sendo um gĂȘnio ao contrĂĄrio de "ter" um gĂȘnio.
Eu preciso dizer que acho que isso foi um grande erro. Eu acredito que permitir que alguĂ©m, uma mera pessoa, acredite que ele ou ela Ă© o vaso, o molde,a essĂȘncia e a fonte de todo o mistĂ©rio criativo, divino, eterno e desconhecido, Ă© um pouco de responsabilidade demais para a nossa psique humana e frĂĄgil. Ă como pedir a alguĂ©m que engula o Sol. Isto sĂł distorce e deforma egos e cria expectativas incontrolĂĄveis sobre a nossa atuação. E eu acredito que Ă© esta pressĂŁo que vem matando nossos artistas durante os Ășltimos 500 anos.
E, se isso Ă© verdade, e eu acredito que seja, a pergunta se torna: e agora? Podemos fazer isso de outra maneira? Quem sabe voltar Ă quela compreensĂŁo mais antiga sobre a relação dos humanos com o mistĂ©rio da criatividade ou talvez nĂŁo. Talvez a gente nĂŁo possa simplesmente apagar 500 anos de pensamento racional humanista num pequeno discurso de 18 minutos. E provavelmente hĂĄ pessoas na platĂ©ia, que vĂŁo levantar suspeitas cientificas legitimas sobre a noção de que existem fadinhas que seguem a gente e esfregam um suco mĂĄgico nos nossos projetos, e tal. Provavelmente eu nĂŁo consiga convencer todos vocĂȘs.
Mas a questĂŁo que eu quero colocar Ă©: por que nĂŁo? Por que nĂŁo pensar sobre isso dessa maneira? Para mim faz tanto sentido quanto todas as outras coisas que jĂĄ ouvi a respeito em termos de explicar os caprichos enlouquecedores do processo criativo. Um processo que, todo mundo que jĂĄ tentou fazer algo, todo mundo que estĂĄ aqui, basicamente -- sabe que nĂŁo se comporta apenas de forma racional. E que, de fato, muitas vezes parece ser inteiramente paranormal.
Eu me encontrei recentemente com a extraordinĂĄria poeta americana Ruth Stone, que estĂĄ com 90 anos, e foi poeta a vida inteira e ela me contou que quando crescia no interior da Virginia, trabalhando na lavoura, ela podia sentir e ouvir um poema chegar atĂ© ela por sobre a paisagem. Ela contou que era como uma lufada estrondosa de ar que que descia atrĂĄs dela atĂ© o campo. E ela sabia que estava chegando, porque a terra tremia debaixo de seus pĂ©s. E ela sabia que sĂł podia fazer uma coisa: que era, em suas prĂłprias palavras, "correr como o diabo" e ela "corria como o diabo" atĂ© a casa como se estivesse sendo perseguida pelo poema, e ela tinha que pegar uma folha de papel e um lĂĄpis, bem depressa, de tal maneira que quando o poema passasse atravĂ©s dela, ela pudesse agarrĂĄ-lo e prendĂȘ-lo naquela pĂĄgina. Algumas vezes ela nĂŁo era rĂĄpida o suficiente e apesar de correr e correr, ela nĂŁo chegava ao papel a tempo e o poema atravessava o corpo dela e ela o perdia e continuava a seguir atravĂ©s da planĂcie procurando, como ela dizia , "por um outro poeta". Algumas outras vezes, e essa Ă© a parte que eu nunca esqueço, ela falou que havia momentos em que o poema passava raspando e ela ia correndo atĂ© a casa atrĂĄs do papel e o poema a atravessava, e ela pegava o lĂĄpis no momento em que ele estava passando por ela e ela dizia que era como se ela o pegasse com a outra mĂŁo e o agarrasse. Ela pegava o poema pelo rabo, e o puxava de volta para dentro do seu corpo enquanto transcrevia a pĂĄgina e nessas instĂąncias, o poema aparecia sobre o papel perfeito e intacto, mas de cabeça para baixo, começando pela Ășltima palavra (risos)
Quando eu ouvi isso, eu fiquei tipo -- isso Ă© bizarro, Ă© exatamente assim que funciona o meu processo criativo. (mais risos)
Meu processo criativo vai bem alĂ©m disso, eu nĂŁo sou apenas uma antena! Eu sou uma mula, de tanto que eu trabalho, eu tenho que acordar todos os dias na mesma hora, e suar e escrever e me atirar ao trabalho de uma forma bem atribulada e atĂ© eu, na minha mulice, jĂĄ me encontrei de raspĂŁo com essa coisa, algumas vezes, e imagino que muitos de vocĂȘs tambĂ©m jĂĄ tenham passado por isso AtĂ© comigo jĂĄ aconteceu de trabalhos ou idĂ©ias chegarem atĂ© mim atravĂ©s de uma fonte que eu honestamente nĂŁo consigo identificar. O que Ă© essa coisa? E como devemos nos relacionar com ela de tal forma que ela nĂŁo nos faça perder a cabeça, mas, que, na verdade, nos ajude a sermos saudĂĄveis?
E para mim, o melhor exemplo contemporĂąneo que temos de como fazer isso, Ă© o musico Tom Waits que eu entrevistei para uma revista anos atrĂĄs NĂłs estĂĄvamos falando sobre isso e Tom, vocĂȘs sabem, durante a maior parte de sua vida, foi o protĂłtipo do artista atormentado moderno e contemporĂąneo, tentando dominar e administrar esses impulsos criativos incontrolĂĄveis que estavam totalmente internalizados nele.
Mas aĂ ele ficou mais velho, mais calmo, e ele me contou que um dia estava dirigindo o carro numa marginal de Los Angeles, e foi quando tudo mudou. Ele estava correndo e de repente ele ouviu um pequeno fragmento de melodia, que surgiu na sua cabeça, uma inspiração que surge Ă s vezes, fugidia e tentadora, e vocĂȘ quer registrĂĄ-la pois Ă© linda, ele a deseja, mas nĂŁo tem como agarrĂĄ-la. NĂŁo tem papel, nem lĂĄpis nem gravador,
E ele começa a sentir aquela ansiedade brotar nele tipo "eu vou perder essa coisa", e esta canção vai me assombrar para o resto da vida. Eu nĂŁo sou bom o suficiente para fazer isso." Mas em vez de entrar em pĂąnico, ele parou. Ele simplesmente parou aquele processo mental e fez algo completamente inusitado. Ele olhou para o cĂ©u e disse, "Desculpe, mas vocĂȘ nĂŁo vĂȘ que eu estou dirigindo?" (risos) "Eu estou com cara de quem vai escrever uma canção agora? Se vocĂȘ quer realmente existir, volte num momento mais oportuno em que eu possa cuidar de vocĂȘ. Ou entĂŁo, vai enlouquecer outra pessoa... Vai atrĂĄs do Leonard Cohen".
E todo o seu processo de trabalho mudou depois disso. Não o trabalho, que na maioria das vezes continua tão escuro quanto antes. Mas o processo e a ansiedade que pesava em torno dele se liberaram quando ele tirou o génio de dentro dele onde ele só criava problema, e devolveu-o ao lugar de onde tinha vindo. E percebeu que não tinha que viver essa coisa internalizada e tormentosa e que ela podia ser apenas uma colaboração maravilhosa e bizarra uma espécie de bate papo entre Tom e aquela coisa estranha fora dele, que não era exatamente Tom.
Quando eu ouvi essa histĂłria eu comecei a mudar um pouco minha forma de trabalhar, e isso jĂĄ me salvou uma vez. Essa idĂ©ia me salvou quando eu estava no meio do livro "Comer, Rezar, Amar" e cai num desses poços de desespero em que todos nĂłs caĂmos quando estamos trabalhando em algo que nĂŁo acontece e vocĂȘ começa a pensar que vai acabar em desastre, e que o seu livro serĂĄ a pior obra jĂĄ escrita. NĂŁo apenas ruim, mas o pior livro de toda a histĂłria. E comecei a pensar em engavetar o projeto. E entĂŁo eu me lembrei de Tom, falando para o ar, e experimentei fazer o mesmo. Eu levantei o rosto do manuscrito e dirigi meus comentĂĄrios a um canto vazio da sala. E disse em voz alta, " Escuta aqui, sua coisa, vocĂȘ e eu sabemos que se este livro nĂŁo for brilhante, a culpa nĂŁo serĂĄ toda minha, certo? Porque vocĂȘ estĂĄ vendo que estou colocando tudo que eu tenho nele E eu nĂŁo tenho nada alĂ©m disso. EntĂŁo, se vocĂȘ quer que ele fique melhor, dĂȘ as caras e faça a sua parte. OK. E se vocĂȘ nĂŁo fizer isso, quer saber? Dane-se! Eu vou continuar escrevendo do mesmo jeito por que este Ă© meu ofĂcio. E eu gostaria que hoje ficasse registrado em nossa agenda que eu compareci para fazer minha parte do trabalho. (risos)
Porque -- (aplauso) no fim das contas Ă© assim, OK -- sĂ©culos atrĂĄs nos desertos do norte da Ăfrica, as pessoas se encontravam para fazer mĂșsica e dançar ao luar que duravam horas, atĂ© o amanhecer. E elas eram magnĂficas porque os dançarinos eram profissionais eles eram incrĂveis, sabe? Mas uma vez ou outra, raramente, acontecia alguma coisa, e um desses bailarinos realmente transcendia. E eu sei que vocĂȘs sabem do que estou falando, porque eu sei que todos vocĂȘs jĂĄ viram, em algum momento de sua vida, uma atuação como esta. E foi como se o tempo parasse, e o dançarino entrasse numa espĂ©cie de portal e ele nĂŁo fazia nada diferente do que vinha fazendo desde hĂĄ mil noites atrĂĄs mas Ă© como se tudo se alinhasse. E nĂŁo mais que de repente ele deixasse de ser apenas humano. E ele era iluminado de dentro para fora, e debaixo para cima, todo iluminado pelo fogo divino.
E quando isso acontecia, naquele tempo, as pessoas sabiam do que se tratava e a chamavam pelo nome. Elas juntavam as mĂŁos e cantavam, "AlĂĄ, AlĂĄ, AlĂĄ, Deus, Deus, Deus". Era Deus, entendem? Uma nota de rodapĂ© curiosa -- historicamente, quando ou mouros invadiram a Espanha, eles levaram consigo esse costume e sua pronĂșncia mudou com o passar do tempo, de "AlĂĄ, AlĂĄ, AlĂĄ, para OlĂ©, olĂ©, olĂ©" que ainda se ouve em touradas e danças flamencas. Na Espanha, quando um artista faz alguma coisa impossĂvel e mĂĄgica, "AlĂĄ, olĂ©, olĂ©, magnĂfico, bravo" Ă© algo incompreensĂvel Ă© um lampejo de Deus. O que Ă© Ăłtimo, porque nĂłs precisamos dele.
Mas a parte complicada acontece na manhĂŁ seguinte, para o dançarino, quando ele acorda e descobre que Ă© terça feira sĂŁo 11 da manhĂŁ e ele nĂŁo Ă© mais um lampejo divino. Ele Ă© apenas um mortal que estĂĄ envelhecendo com joelhos estourados, e quem sabe ele nunca mais suba tĂŁo alto E que talvez ninguĂ©m mais cante seu nome outra vez enquanto ele gira, e entĂŁo, o que ele deve fazer com o resto de sua vida? Ă difĂcil. Esta Ă© um dos mais dolorosos acertos a se fazer numa vida criativa. Mas digamos que isso nĂŁo tenha que ser tĂŁo angustiante se vocĂȘ nunca acreditar, em primeiro lugar, que os aspectos mais extraordinĂĄrios do seu ser vem de vocĂȘ. Quem sabe seja melhor acreditar que eles sĂŁo emprestados a vocĂȘ por uma fonte inimaginĂĄvel de uma parte rara de sua vida que serĂĄ passada para alguĂ©m quando vocĂȘ partir. E acreditem, se a gente pensa nisso desta forma, tudo começa a mudar.
Foi assim que eu comecei a pensar, e Ă© assim que tenho pensado nesses Ășltimos meses enquanto trabalho no livro que devo publicar em breve a tal perigosa, apavorante e muito aguardada continuação do meu louco sucesso.
E o que eu digo a mim mesma quando eu fico realmente enlouquecida com isso, Ă©: nĂŁo tenha medo. NĂŁo desanime. Apenas faça o seu trabalho. Continue a comparecer para fazer sua parte, seja ela qual for. Se seu trabalho Ă© dançar, dance. E se o gĂ©nio divino e maroto que foi designado para acompanhar o seu caso permitir que atravĂ©s do seu esforço aconteça um lampejo maravilhoso, entĂŁo, "OlĂ©"! E se nĂŁo, faça a sua dança,do mesmo jeito, E "OlĂ©" para vocĂȘ da mesma forma. Eu acredito nisso e acho que devemos ensinar isso uns aos outros. "OlĂ©!" para vocĂȘ, apesar de tudo, simplesmente por possuir esse puro amor humano e a teimosia de continuar aparecendo para fazer a sua parte.
Obrigada. (aplauso) Obrigada. (aplauso)
June Cohen: Olé! (aplauso)
[Via BBA]
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